Skip to main content

BNZ em foco

A Obrigatoriedade do Cumprimento da Suspensão Automática

Publicada em: 25/09/23

06/09/2018

 

Carlos Sánchez ao Santos Futebol Clube, reacendeu a velha discussão acerca da condição de jogo. O tema vem de longa data e, de tempos em tempos, volta ao noticiário esportivo.

Invariavelmente, a responsabilidade para interpretar a condição de jogo recai, objetivamente, sobre os clubes profissionais, tendo os sistemas das federações caráter meramente informativo. À parte qualquer caráter político que se possa imaginar quando de tal análise, o objetivo deste artigo é, tão-somente, tecer alguns comentários científicos sobre a natureza jurídica da suspensão automática.

A. Caso Tinga

Em 2010, o tema foi enfrentado quando do confronto entre São Paulo Futebol Clube e Sport Club Internacional pelas semifinais da Copa Libertadores da América.

Após quatro anos atuando pelo Borussia Dortmund, da Alemanha, o atleta Paulo César Tinga retornou ao SC Internacional. Em sua última partida por equipe sul-americana, coincidentemente pelo mesmo clube e contra o mesmo adversário, o atleta foi expulso de campo após receber o segundo cartão amarelo em decorrência de atitude antidesportiva (levantou a camiseta durante a comemoração de um gol).

Tendo em vista que o referido atleta havia sido transferido para a Alemanha, e, portanto, ficara impossibilitado de cumprir a respectiva suspensão automática em campeonato organizado pela CONMEBOL, aplicou-se o Regulamento da Copa Santander Libertadores 2010, que regia o seguinte:

(i) A expulsão de um jogador do campo de jogo implica suspensão na partida seguinte do mesmo certame[1].

(ii) Caso a suspensão automática não tenha sido cumprida total ou parcialmente no mesmo certame em que o atleta fora expulso, a penalidade continuará vigente nos torneios seguintes, desde que estes sejam interclubes e organizados pela CONMEBOL.[2]

(iii) Entende-se por “certame seguinte”, nos termos do Regulamento da Copa Libertadores 2010, o primeiro torneio que se realize com a participação de clube em que o atleta sancionado esteja registrado. Salienta-se que a pena só poderia ser cumprida, caso o “torneio seguinte” fosse organizado pela mesma entidade de administração do desporto; no caso, a CONMEBOL.[3]

Resumidamente, em que pese a intenção do SC Internacional fosse converter a pena em medida social, prevaleceu o entendimento defendido pelo departamento jurídico do São Paulo FC, segundo o qual:“se (i) o jogador realizou sua última partida por clube brasileiro em torneio organizado pela CONMEBOL em 2006; se (ii) essa partida fora a última do torneio em que ele estava registrado; e se (iii) o jogador em questão fora expulso de campo nessa oportunidade; logo, a primeira oportunidade para cumprir a suspensão automática, devida em razão de expulsão de campo, é a partida subsequente à sua regular inscrição em torneio de clubes organizado pela CONMEBO.”

Sendo assim, o atleta foi obrigado a cumprir a suspensão automática na primeira partida das semifinais da Copa Libertadores de 2010.

B. Caso Carlos Sánchez

Em 2015, quando atuava pelo o Club Atlético River Plate, da Argentina, o jogador uruguaio Carlos Sánchez, ao agredir um gandula que retardava a reposição de bola, foi expulso durante a segunda partida da semifinal da Copa Sul-Americana, contra o Club Atlético Huracán. Como consequência, o atleta foi suspenso disciplinarmente pelo Tribunal Disciplinar da CONMEBOL por três partidas.

Após disputar o campeonato mundial interclubes, organizado pela FIFA, Carlos Sánchez transferiu-se ao Club de Fútbol Monterrey, do México, chagando ao Santos Futebol Clube em julho de 2018.

Em 21 de agosto deste ano, Carlos Sánchez foi escalado pelo Santos FC para atuar contra o Clube Atlético Independiente, da Argentina, em partida válida pelas oitavas-de-final da Copa Libertadores da América, competição organizada pela CONMEBOL.

Provocado por reclamação do CA Independiente, o Tribunal Disciplinar da CONMEBOL proferiu, em 28 de agosto de 2018, a seguinte decisão:

“Considerando:

(I) Que os mencionados artigos 56 e 19.3 permitem para qualquer clube a reivindicação perante o resultado de um jogo, devido ao alinhamento incorrecto de um jogador adversário até 24 horas após a partida e o Club Atlético Independiente trouxe tal reivindicação em tempo e em forma;

(Ii) Que o Santos Futebol Clube apresentou por escrito sua defesa em tempo e forma no dia 24 de Agosto de 2018 e 27 de agosto 2018, foi concedido o direito de ser ouvido em uma audiência perante esta Corte prévio ao seu documento;

(Iii) Que o Tribunal Disciplinar observou que Santos Futebol Clube não cumpriu o dever de comunicar-se diretamente com a Unidade Disciplinar, em conformidade com o artigo 9º do Regulamento da CONMEBOL Libertadores de 2018;

(Iv) Nos termos do artigo 19.1 do RD, qualquer equipe que é responsável por um alinhamento impróprio é considerado perdedor desse jogo 3-0;

(V) Que o Tribunal de Disciplina responsabiliza Santos Futebol Clube pela infração de alinhamento indevida do jogador Carlos Andrés Sánchez na violação da penalidade pendente da suspensão de um jogo.

Portanto, para o caso em questão, o Tribunal Disciplinar resolveu:

1. FAZER LUGAR à reclamação apresentada pelo Club Atlético Independiente;

2. DECLARAR como perdedor o Santos Futebol Clube do jogo disputado ante o Club Atlético Independiente referente a partida de ida das oitavas-de-final da CONMEBOL Libertadores 2018, em consequência:

3. DETERMINAR o resultado de 3 - 0 para o Club Atlético Independiente de acordo com o artigo 19 do Regulamento Disciplinar da CONMEBOL.

4. CONFIRMAR a suspensão do jogador CARLOS ANDRÉS SÁNCHEZ ARCOSA de 1 (um) jogo, que deve ser atendido na próxima partida da CONMEBOL Libertadores 2018.”[4]

No mesmo dia, em razão de pedido proposto pelo clube brasileiro, o Tribunal reconsiderou o ponto 4 de sua decisão (suspensão de 1 partida ao jogador Carlos Sanchez), nos termos do art. 77, letra a, do Regulamento Disciplinar da CONMEBOL. Em outras palavras, uma vez que o resultado da partida foi determinado por órgão judicial, a sanção disciplinar é considerada cumprida, até porque fora o seu não cumprimento, em tese, que implicara a mudança judicial do resultado da partida. Não fosse assim, haveria uma dupla punição, ao jogador e ao clube infrator. Diante disso, o atleta restou liberado para atuar na partida subsequente da mesma competição.

De forma similar à ocorrida com o jogador Tinga, e nos termos do Regulamento Disciplinar da CONMEBOL, a suspensão automática deveria ter sido cumprida na partida subsequente à sua regular inscrição em torneio de clubes organizado pela CONMEBOL.

Em que pese a CONMEBOL, em 2016, e por conta de seu centenário, tenha resolvido anistiar parcialmente suspensões disciplinares pendentes, tanto de clubes quanto de jogadores, entendemos que a autonomia da entidade de administração, cingida à competição e disciplina, não tem o condão de aviltar a regra-FIFA da suspensão automática.

C. Da Suspensão Automática

Princípio básico do Regulamento Disciplinar da FIFA é que suspensão automática devida pelo recebimento do cartão vermelho tem origem nas Regras do Jogo, isto é, uma vez apresentado o cartão vermelho pelo árbitro da partida, autônomo no campo de jogo, nos termos da Regra 5, o atleta estará, necessária e automaticamente, suspenso da próxima partida. [5]

O princípio da abstração (Abstraktionsprinzip), o qual informa o Direito Civil Suíço justamente por ter origem na doutrina privatista alemã, denota com clareza a separação existente entre a punição devida em razão das Regras do Jogo e aquela devida em razão do direito desportivo disciplinar. Mais nítido ainda fica o isolamento cognitivo dessas duas esferas se considerarmos o âmbito de atuação da autonomia das entidades de administração do desporto.

No nosso entender, por mais que as entidades de administração desenvolvam sistemas informativos, a ratio legis da suspensão automática continuará estando nas Regras do Jogo, que conferem implicações específicas aos casos de expulsão (“além de ser excluído do restante do jogo, ficará também fora do próximo”). A regra de ficar de fora de competição organizada pela mesma entidade de administração do desporto pertenceria, por outro lado, exclusivamente à esfera desportivo-disciplinar abarcada pela autonomia recém mencionada.

O Regulamento Disciplinar da CONMEBOL, art. 11, parágrafo 8, é bastante claro no que tange à responsabilidade do cumprimento da suspensão automática:

“As suspensões automáticas são denominadas assim porque operam sem necessidade de que a Unidade Disciplinar informe ao clube ou ao jogador processado sobre as mesmas (sic). A notificação realizada pela Unidade Disciplinar tem efeitos somente informativos, sendo exclusivamente responsabilidade dos clubes e das Associações Membro que seus jogadores cumpram com as mesmas (sic), sob advertência expressa das consequências regulamentares que em caso contrário possam derivar-se (ex.: escalações indevidas).”

Por sua vez, o art. 75, lit. b, do mesmo regulamento, ao tratar da executoriedade das sanções, confere aos clubes o dever de, internamente, interpretar a condição de jogo e, em especial, o cumprimento ou não de punições passadas:

“As sanções e ordens entrarão em vigor desde o momento de sua notificação, exceto: b) As suspensões automáticas como consequência de cartões amarelos (advertências) ou vermelhos, que são imediatamente executivas, mesmo que a decisão confirmatória não tenha sido notificada pelo órgão judicial”.

CONCLUSÃO

A gama de regramentos no Direito Desportivo globalizado implica um conhecimento paradoxal – ao mesmo tempo específico e geral – das normas e regras do esporte, unificadas e emanadas de órgãos supranacionais, que são as federações internacionais, distribuídas em forma de pirâmide. Tal conhecimento pressupõe um domínio completo do que chamamos de lex sportiva, isto é, da jurisprudência supranacional do Direito Desportivo.[6]

Neste contexto, a suspensão automática, de natureza pré-processual, não seria passível de conversão para medida de caráter social.

Via de regra, apenas a extensão de sua duração seria permitida pelo tribunal disciplinar.[7] Por exceção, no entanto, os tribunais desportivos podem anular o cartão vermelho para retificar erros disciplinares óbvios da arbitragem ou, mesmo, infrações graves que tenham escapado à sua atenção[8].

Não sendo o caso de anulação do principal (cartão vermelho), e sob o ponto de vista da abstração necessária à boa leitura do Direito Desportivo Internacional, a natureza jurídica da suspensão automática impõe que esta deva ser irremediavelmente cumprida.



[1] Art. 13.3, Regulamento da Copa Libertadores 2010: “La expulsión de un jugador del campo de juego comportará la automática suspensión del mismo para intervenir en el siguiente partido del certamen.”
[2] Art. 14.1, Regulamento da Copa Libertadores 2010: “Si las sanciones previstas en el artículo anterior no fueran cumplidas total o parcialmente en el mismo certamen en el que fueran aplicadas, la correspondiente penalidad continuará vigente, hasta su total extinción, en el/los siguiente/s torneo/s de clubes de la CONMEBOL.”
[3] Art. 14.2, Regulamento da Copa Libertadores 2010: “Se entiende por siguiente certamen el primero que se realice después con la intervención del club en el cual esté registrado el jugador sancionado.”
[4] http://www.conmebol.com/pt-br/tribunal-disciplinar-emite-decisao-ante-reclamacao-apresentada-pelo-clube-atletico-independiente.
[5] Art. 17, 2, Regulamento Disciplinar da FIFA: “Two cautions received during the same match incur an expulsion (indirect red card) and, consequently, automatic suspension from the next match”.
[6] Acerca da formação, desenvolvimento e consolidação da jurisprudência do TAS/CAS como a lex mercatoria dos novos tempos (“Die Lex mercatoria der neuen Zeiten”), vide a tese de doutorado defendida na Eberhard-Karls-Universität Tübingen, com vasta indicação bibliográfica, BORGES, Maurício Ferrão Pereira. Verbandsgerichtsbarkeit und Schiedsgerichtsbarkeit im internationalen Berufsfußbal, 2009, p. 88 et seq.
[7] Art. 18, 4, Regulamento Disciplinar da FIFA: “An expulsion automatically incurs suspension from the subsequent match, even if imposed in a match that is later abandoned, annulled and/or forfeited. The Disciplinary Committee may extend the duration of the suspension.”
[8] Art. 77, lit. a e b, Regulamento Disciplinar da FIFA: “The Disciplinary Committee is responsible for: a) sanctioning serious infringements which have escaped the match officials’attention; b) rectifying obvious errors in the referee’s disciplinary decisions (…).”

 

Maurício Ferrão

Carlos Aidar

Uma seleção dos principais temas do campo jurídico especialmente para você

Escritório
  • Rua Padre João Manuel, 923
    14° andar - CJ. 141
    Cerqueira César, São Paulo - SP
    CEP: 01411-001

Social